Keynes estaria aflito com as práticas introduzidas no Brasil para o reajuste dos preços dos derivados do petróleo.
Os mercados derrubaram as ações da Petrobras, enquanto os caminhoneiros rilhavam os dentes diante do vai-mas-não-vai do novo reajuste do preço do diesel. Já a ministra do Agronegócio apresentou as queixas da sua turma contra a tabela de fretes ajambrada pelo destemido Michel Temer. Espremido entre os humores dos mercados financeiros, as ameaças dos caminhoneiros e as investidas do agronegócio, o presidente Bolsonaro aprestou-se a dizer que não era economista e negou ter perpetrado uma “intervenção” no reajuste do diesel.
O Odisseu de Homero navegou seu barco entre ameaças de Cila e Caríbdis, dois monstros que o atormentaram no Estreito de Messina. Nosso Odisseu de Xiririca enfrenta três: 1. Os mercados nervosos, despóticos e autorreferidos. 2. Os caminhoneiros em desassossego com o novo reajuste. 3. A turma do agronegócio que manifesta o desagrado com a tabela de fretes.
Na primeira trombada entre os caminhoneiros e a Petrobras escrevi no jornal Valor que, “em 2017, os contratos futuros (paper barrel) negociados nos mercados de Londres e Nova York movimentaram um valor 23 vezes superior àquele registrado no mercado físico (wet barrel)”. No mundo acarpetado pelas novas formas financeiras, as relações entre demanda e oferta de petróleo não podem ser avaliadas conforme critérios tradicionais. A formação de preços está sempre acompanhada por movimentos especulativos que sujeitam os mercados da preciosa matéria-prima à amplificação das flutuações que caracterizam os auges e derrocadas dos preços de ativos.
A finança global lambe os beiços diante das operações nos mercados futuros de petróleo. Em princípio destinados a proteger os agentes do mundo real contra as imprevisibilidades da precificação de ativos e commodities executada pelos mercados, os derivativos ganharam vida própria e se transmutaram em formas financeiras que abrem espaço para manobras especulativas de ordem superior. As taxas de câmbio e as apostas nos mercados futuros com índices de commodities são, hoje, exemplos escandalosos e aberrantes dessa “inversão” que submete as políticas econômicas a constrangimentos e a conflitos nada triviais.
Segue o enterro: os acontecimentos recentes mostram que os “mercados” tendem a exasperar a volatilidade dos preços diante de expectativas de desequilíbrios momentâneos entre oferta e procura. Esses derivativos ateiam gasolina ao fogo nos períodos de alta e, na baixa, jogam mais água do que o necessário na fervura. A “inflação” ou a deflação do petróleo impacta as economias com força redobrada.
No estudo A Model of Financialization of Commodities, Suleyman Basak e Anna Pavlova estudam cuidadosamente os efeitos da “financeirização” sobre a volatilidade dos índices de preços da commodities. Esses índices têm um peso considerável do petróleo. Demonstram os autores do estudo que “a volatilidade é acentuada pela participação das grandes instituições financeiras – investidores institucionais – sempre empenhadas em não ficar na rabeira dos movimentos do índice”.
Os caminhoneiros rilham os dentes diante do vai-mas-não-vai do reajuste do preço do diesel
Uma vez assumida a posição dominante nas transações financeiras – tanto no que diz respeito ao volume negociado quanto no que se refere à alavancagem –, os derivativos passaram a “comandar” os movimentos dos ativos subjacentes. As taxas de câmbio e as apostas nos mercados futuros com índices de commodities são, hoje, exemplos escandalosos e aberrantes dessa “inversão”, o que submete as políticas econômicas a constrangimentos e conflitos nada triviais – vamos às questões atuais – entre o objetivo de manter a inflação sob controle e o propósito de não danar o crescimento ou colocar em risco a estrutura industrial e, consequentemente, o “arcabouço” de geração de renda e emprego.
Na aurora da crise financeira, Willem Buiter, hoje economista-chefe do Citi-group, apontou as armas da crítica na direção dos sistemas financeiros “intrinsecamente disfuncionais, ineficientes, injustos e regressivos, vulneráveis a episódios de colapso”, um exemplo de “capitalismo de compadres”, sem paralelo na história econômica do Ocidente. “É uma questão interessante, para a qual não tenho resposta… Não sei se os que presidiram e contribuíram para a criação e operação (desse sistema) eram ignorantes, cognitivamente e culturalmente capturados ou, talvez, capturados de forma mais direta e convencional pelos interesses financeiros.”
Dizem os frequentadores que nas salas e corredores do King’s College, em Cambridge, na Inglaterra, ainda ressoa a indagação da professora Joan Robinson, uma das herdeiras intelectuais de Keynes: “ O que Maynard diria?” Maynard, o leitor já sabe, é John Maynard Keynes.
Maynard, imagino, estaria aflito com as práticas introduzidas no Brasil para o reajuste dos preços dos derivados de petróleo. Seja como for, Maynard ficaria chocado com uma mudança que poderá ampliar assustadoramente os intervalos de flutuação do preço de uma commodity tão importante como o petróleo.
Pouca gente sabe, mas Keynes advogou, no espírito da Nova Ordem Econômica Internacional do Pós-Guerra, a criação do General Council of Commodity Controls, destinado a atenuar as excessivas flutuações de preços de commodities, lesivas aos países produtores e consumidores, danosas à estabilidade das economias. Isso seria feito mediante uma política de gestão de estoques, coordenada por um comitê de especialistas formado por representantes dos países produtores e consumidores.
O preço do petróleo está dependente ao sabor dos mercados, das ameaças dos transportadores de cargas e das pressões do agronegócio
“Uma agência internacional seria constituída, a Commod Control, com representantes dos governos dos principais países produtores e consumidores. A Commod fixaria os preços em um nível mínimo razoável (garantindo a renda dos produtores e o conforto dos consumidores) e esses valores seriam modificados de tempos em tempos, com base na tendência observada na variação de estoques, para cima ou para baixo. Não seria tecnicamente difícil estabelecer uma relação entre os valores ‘básicos de sustentação’ e o complexo de preços atuais, porquanto os movimentos de preços nos mercados futuros sinalizariam a atuação correta para o comitê de especialistas.”
Keynes reconhece que a formação de preços deveria decorrer da interação entre as informações do mercado e a agência internacional incumbida de manejar os “estoques reguladores”, com o propósito de aplainar as flutuações agudas e garantir a estabilidade das expectativas nos mercados de commodities.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.
Fonte: CartaCapital
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