“Quando o vírus chega, ele acentua as desigualdades existentes”, afirma Paula Silva

Nas últimas semanas, assistimos a uma onda de protestos no Brasil, Estados Unidos e outros países, reivindicando o fim da violência policial praticada contra a população negra. As manifestações alertam para algo que estrutura a nossa sociedade: o racismo. Na pandemia, a população negra fica mais vulnerável ao adoecimento, ao desemprego, à perda de renda e também à violência policial. Para refletir sobre esses problemas e pensar saídas, conversamos com Paula Silva, militante do Levante Popular da Juventude e diretora da União Nacional dos Estudantes (UNE).

No começo da pandemia, muitos começaram a dizer que o coronavírus é democrático, que ele atinge igualmente a todas as pessoas. Porém, estamos vendo que, concretamente, negros estão mais vulneráveis a adoecer e também perdem mais empregos e renda durante a crise. Como você vê essa relação entre a raça e a questão sanitária?

A afirmação de que o vírus atinge a todos igualmente é de quem não conhece a realidade brasileira. O Brasil é um país marcado pela desigualdade social, onde a maior parte da renda está concentrada nas mãos de poucas pessoas, e a raça está atrelada à classe social.

É uma característica do nosso país a maior parte da nossa população ter baixos salários, que não são suficientes para viver, pagar aluguel, comida, gás, lazer. Também temos uma mão de obra excedente muito grande, que tem aumentado nos últimos tempos, de pessoas desempregadas. Temos a marca da violência, que é grande, inclusive por parte do Estado contra as pessoas. A violência é a forma de perpetuar as desigualdades.

Quando o vírus chega, ele acentua as desigualdades já existentes. Então, se a população negra está historicamente em uma situação de vulnerabilidade, com seus direitos cerceados, com a vida sendo ceifada, o vírus tende a atingir de forma mais intensa a população negra, que é a maior parte dos trabalhadores no país. Isso ocorre no mundo todo.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o coronavírus mata três vezes mais negros do que pessoas de outras etnias. Em São Paulo, os negros têm 62% mais chances de morrer do que os brancos. Eu não encontrei dados mais apurados de Minas Gerais porque, aqui, nós temos lidado com uma realidade de subnotificação. E o governador Zema não tem medidas mais eficientes para pesquisa e testagem.

Mas sabemos que os negros somos as maiores vítimas por sermos pobres, trabalhadores, por vivermos a desigualdade social, problemas com saneamento básico, insegurança alimentar e dificuldade para acessar a assistência médica. Tudo isso aumenta o nosso risco de adoecer e morrer. E a própria forma como uma pessoa negra vai ser atendida não é como uma pessoa branca. Tudo isso faz com que as pessoas negras estejam em uma maior vulnerabilidade.

Temos visto, nos últimos dias, vários assassinatos de pessoas negras no Brasil e Estados Unidos, como é o caso do menino João Pedro, morto pela polícia em sua própria casa, e do George Floyd, assassinado na rua, à luz do dia, perante várias testemunhas, nos Estados Unidos. Em São Paulo, a letalidade policial aumentou 53% no mês de abril, em comparação com o mesmo período do ano passado. A ameaça do extermínio da população negra cresceu no período recente?

Uma das nossas pautas centrais do movimento negro na luta antirracista é contra o extermínio da juventude negra. Sabemos que, a cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil. A cada vez, vemos esse índice aumentar. Isso acontece também para manter a desigualdade social no Brasil e para impedir que as pessoas negras possam aflorar um pensamento crítico e conseguir se organizar para mudar a realidade.

Na maioria das vezes, quando a polícia entra nas periferias e acaba em assassinato de jovens, é com o pretexto do combate às drogas. Só que as drogas continuam circulando livremente e não é só nas periferias. Todos os espaços da sociedade têm pessoas usuárias de drogas, têm pessoas que vendem drogas e isso nos faz pensar que não há um combate às drogas.

 

Há um combate ao povo, como se o povo brasileiro fosse o inimigo a nação.

Só que somos esse país, a maior parte desse país, inclusive. Mas, por conta do racismo e dessa forma restrita de pensar a política de drogas, temos sido vítimas do Estado constantemente.

O fato de hoje termos o presidente Bolsonaro, um entusiasta das Forças Armadas que não problematiza a situação que é assassinar o povo como se vivêssemos uma guerra, que incentiva o porte de armas, que incentiva a violência, que não se solidariza, não tem a menor sensibilidade com a vida da população, faz com que esses agentes da segurança pública se sintam ainda mais confortáveis para atirar indiscriminadamente.

É claro que não existe um culpado. Se um policial mata um jovem negro na operação, a culpa é da Polícia Militar como instituição, a culpa é de como o Estado enxerga a segurança pública, que não é visando à defesa da vida, é priorizando a defesa dos patrimônios. Então, nós temos que repensar essa falsa política de drogas no Brasil, que tem servido de pretexto para matar o povo negro.

Os profissionais da saúde estão recomendando o isolamento. Porém, centenas de milhares de pessoas, a maioria negras, estão no sistema prisional aglomeradas. Muitas delas, inclusive, nem deveriam estar presas, mas sequer foram julgadas. Isso é uma sentença de morte?

As pessoas que estão privadas de liberdade, além de estarem aglomeradas, em uma situação insalubre, também estão fadadas à falta de acesso à educação, saúde. O que tem norteado o sistema carcerário a tomar decisões frente à covid-19 é um pensamento punitivista e violento, que só reforça como o preconceito impede de tomar medidas eficientes de combate ao vírus.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e várias autoridades sanitárias têm colocado vários dispositivos legais para o desencarceramento de pessoas vulneráveis. Quem pertence a grupos de risco deveria cumprir sua pena em medida domiciliar, entre outras alternativas.

Mas o preconceito impede que o sistema carcerário adote essas medidas e, além disso, também pense nas pessoas que trabalham no sistema carcerário. Essas pessoas também estão expostas e podem levar o vírus para outras pessoas. Ao trabalharem, elas pegam o transporte público e, ao chegarem em casa, podem contaminar sua própria família. Então, o coronavírus tem nos lembrado da importância de repensar o sistema carcerário no Brasil.

Que medidas deveriam ser tomadas em defesa da vida da população periférica, trabalhadora, negra no Brasil? É possível implementar essas medidas com os governos Zema e Bolsonaro?

Os movimentos, partidos e demais entidades da classe trabalhadora construíram uma plataforma de emergência para que o povo brasileiro consiga passar o momento da pandemia de uma forma mais justa. Historicamente, já não temos acesso aos direitos básicos, o que nos deixa mais vulneráveis. São direitos como saúde, educação, trabalho, renda digna.

Sem isso, é muito difícil passar por esse momento sem correr risco de contaminação. Por isso, temos reivindicado, primeiro, a renda básica para proteger os trabalhadores informais, principalmente. A necessidade de ficar em casa não faz sentido para as pessoas porque elas precisam sair de casa para garantir o seu sustento.

Foi uma conquista o auxílio emergencial por três meses, mas precisamos continuar lutando pela ampliação e para que o Estado opere para que o auxílio seja entregue às pessoas de maneira mais célere, mais rápida. Isso é importante para que muita gente consiga fazer seu isolamento.

É importante também pedir a suspensão da Emenda Constitucional 95, que coloca um teto de gastos para a saúde, a educação. Neste momento, esses dois setores carecem muito de investimento. A saúde, por razões óbvias. É no SUS que vamos conseguir ser tratados em casos de contaminação, é o SUS que conscientiza as pessoas, faz o atendimento, cuida da vida das pessoas. Então, precisa de equipamentos, melhorar a remuneração, contratar mais pessoas.

A educação também precisa de investimento porque não temos tecnologia para implementação de aulas remotas. Por conta da desigualdade social, nem todo mundo tem acesso à internet, nem mesmo o sinal do canal de TV pública. Então, temos que repensar o modelo e formas de garantir para quem é mais pobre ter formas de acesso para suprir o período letivo.

Por fim, eu queria dizer que o fato de sempre passarmos por dificuldades em um sistema de opressão que se perpetua em nossas vidas e, agora, diante da pandemia, estarmos mais vulneráveis, pode nos deixar desanimados, pensando que as coisas não têm mudança, sem perspectiva. Mas eu queria lembrar que nosso povo passou por momentos muito adversos. Nós superamos a escravidão, superamos vários golpes na história do Brasil. E, no meio dessas dificuldades que nem conseguimos imaginar como foram, conseguimos estabelecer vitórias.

Nós, desta geração, não sabemos o que é viver uma pandemia. Então, é muito difícil pensar alternativas, como vai ser depois. O nosso inimigo é grande, ele tem nas mãos as instituições. Mas nossa força está na quantidade que somos, nós somos a maior parte da população. Uma ótima resposta que podemos dar é nos mantermos vivos, em coletividade, construindo um projeto de vida plena, não apenas para nós, mas para as próximas gerações também.

O nosso povo já nos mostrou esse legado de vitórias, de conquistas. Então, não vamos desanimar, vamos seguir de cabeças erguidas e pensar que podemos conquistar muito mais.

Fonte:  Wallace Oliveira – Brasil de Fato Minas – 11/06/2020

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